segunda-feira, 19 de setembro de 2011

Compor, arranjar, viajar, tocar: as contínuas atividades de André Mehmari


Parecia uma sociedade secreta. Não mais do que cem pessoas assistiram no Teatro Coliseu, dentro da Série Solistas, com regência do maestro Luís Gustavo Petri, o concerto do pianista André Mehmari com a Orquestra Sinfônica Municipal de Santos.
Ficou uma dúvida na cabeça, os veículos de comunicação da Baixada Santista ignoraram solenemente o concerto ou faltou mais empenho na divulgação do evento por parte da realização?
O fato é que as pessoas que assistiram ao concerto na quarta-feira, dia 14 de setembro, lavaram a alma com tão boa música. Oportunidade rara nesses dias regidos por Luans e Paulas.
O programa incluiu Beatriz (Edu Lobo e Chico Buarque), Choro da Contínua Amizade (André Mehmari) e Odeon de Ernesto Nazareth) na abertura. A Rosa, de Pixinguinha, ganhou um belo arranjo, e a magnífica Lachrimae, do próprio Mehmari, fechou a primeira parte do concerto baseada em temas populares.
A segunda foi baseada em temas eruditos que fogem do lugar comum: Ballo ”Suíte para Orquestra de Cordas” a partir de uma dança do Ballo delle Ingrate, de Monteverdi. E também Uma Valsa em Forma de Árvore, de André Mehmari, com clarinete solo de Mário Cesar Borges Marques, entre outras. No final, uma brincadeira, Mehmari e Petri dividiram um piano em um concerto para quatro mãos de Mozart.
Mehmari vem se consolidando não só como um dos mais importantes instrumentistas do país, mas também como um dos maiores compositores. Daqueles que transitam nos três mundos: erudito, popular e o híbrido entre ambos, o bom e velho jazz. Não liga muito para rótulos, aliás, como nenhum músico, quem liga pra isso é acadêmico e jornalista.
Mehmari compõe em ritmo alucinante e grava na velocidade do trem bala. Já fazia isso antes da viagem ao Japão, abordada na entrevista abaixo. Ele também fala sobre sua amizade/parceria com Hamilton de Holanda, uma das mais prolíficas parcerias da atualidade. Já rendeu dois discos e inúmeras apresentações Brasil a dentro.

Texto: Eugênio Martins Júnior
Foto: Dayse Marchiori

Eugênio Martins Júnior - Em que pé anda a musica instrumental brasileira? Ela é mais reconhecida lá fora do que aqui, você não acha?
André Mehmari –
Acho que são reconhecimentos diferentes. O Tom Jobim brincava que a grande saída para o músico brasileiro era o aeroporto. Eu não iria tão longe, assim. Tive muitas alegrias como músico na minha terra, tocando em diferentes lugares, em grandes centros como São Paulo, Rio. E lugares menores, interior de São Paulo, onde você espera que as pessoas não irão conhecer o seu trabalho. O brasileiro tem um pouco essa cultura de valorizar o seu músico quando ele faz sucesso fora. É um pouco da nossa baixa auto estima como brasileiro. A música brasileira é muito valorizada e respeitada no mundo todo. Estive no Japão esse ano fazendo uma turnê de piano solo e conheci muita gente que conhece muito. Tem uma loja em Nagoia só de música brasileira. Eu não conheço nenhuma loja aqui no Brasil que tenha todos os meus CD, e você vai em Nagoia e tem. É um paradoxo, a gente adora esse nosso país, mas vê também que muitas vezes precisa ter essa vida ativa fora do país pra manter a música rodando. Agora eu acho também que as novas tecnologias de difusão musical na internet estão democratizando muito a minha música e de tantos outros. Então, você tem a agradável surpresa de tocar em uma cidade escondida e descobrir que você tem lá um fã clube.  

EM - Logo após o terremoto você embarcou para uma série de apresentações no Japão. Lembro que você disse que estava apreensivo, mas que precisava ir e fazer os shows para os japoneses. Como foram essas apresentações?
AM -
Foi uma experiência emocionante, até pelo que você falou sobre a tensão que envolveu os últimos meses de preparação. É uma turnê que estava planejada há um ano. Envolvia meu contrato com a Yamaha e envolvia escolher um piano lá na fábrica, envolvia concertos em Tóquio, em Nagoia, em Yokoyama e envolvia o esforço de uma japonesa que é uma verdadeira heroína que é a Michico Mikata, que é uma super técnica de piano, ela não é produtora, e que é muito fã do meu trabalho e resolveu me levar pra lá. Fazendo esforços e fazendo a produção acontecer. Foi muito tenso aquele mês que antecedeu a viagem, por que a cada minuto, você sabe, tinha uma informação nova sobre a situação lá em Fukushima, sobre a contaminação dos alimentos. Isso pra mim foi muito triste, um momento de muita ansiedade. A verdade é que o povo japonês é maravilhoso. É um povo que sempre me impressionou, estive lá em 2005 com a Joyce o Dori Caymmi e eu confio muito nesse povo. Eles nunca seriam capaz d me colocar em uma situação de risco. E eles me garantiram que isso não ia acontecer. Eu confiei e, de fato, acho que eles estavam precisando dessa confiança e desse carinho que eu levei pra eles. E essa música que eles amam, né? Onde eu tocava via na platéia gente rindo, gente chorando. Eles adoram de verdade essa música. Foi impressionante. Os lugares onde toquei, os pianos maravilhosos que toquei, as pessoas que eu conheci. Eu acertei na mosca indo. Se não tivesse ido teria enorme prejuízo de várias naturezas, até por que fui lá na Yamaha e escolhi meu piano. Fui super bem recebido, tinha a bandeira do Brasil lá na fábrica, uma coisa muito bonita.

EM – Você chegou perto de alguma região atingida pelo terremoto ou pelos tsunamis?
AM –
Não, fiquei em Tóquio. Foi o mais próximo que estive do problema. O tsunami foi no nordeste do país e o problema com a usina radioativa é ao norte de Tóquio. Eu toquei em Tóquio, Nagóia e Yokayama que é dentro da ilha, longe do litoral. Cheguei lá um pouco preocupado com a alimentação, mas percebi que podia relaxar, porque todos estavam me colocando em uma situação de muita segurança. O tratamento foi formidável, o único pedido que eu havia feito era de água mineral européia e a produtora ficava o tempo inteiro me oferecendo a água mineral, com todo cuidado. As pessoas lá têm um senso de respeito, de colaboração que é uma aula para o mundo. Agora, por exemplo, os mais idosos estão se oferecendo para trabalhar em Fukushima pra deixar os jovens fora do perigo. Recebi dez vezes mais em troca o meu voto de confiança e carinho de ir lá tocar. Colhi bons frutos, saiu um disco meu lá, por um selo japonês, então também iniciei um trabalho no Japão à longo prazo, que deve ter uma continuidade.  

EM - Acompanho a tua carreira a do Hamilton e tenho visto que vocês não têm folga. Tocando direto no Brasil, mas também na Europa, Japão, Estados Unidos, às vezes por temporadas. Hoje você toca com uma orquestra, amanhã já faz duo. Não é muita coisa. Às vezes a cabeça não dá um nó e pede pra diminuir mo ritmo?
AM -
Você sabe que eu gosto dessa diversidade de trabalho? Então, você falou no duo com o Hamilton, mas tem o trio, tem o duo com a Mônica Salmaso, com a Ná Ozetti, com o Gabriele Mirabassi, com quem eu toquei agora na Itália, tem o trabalho de arranjador constante. Recebo encomendas de arranjo para orquestras, composição. Acabei de receber uma encomenda grande para o Sergipe, outra de Curitiba, outra do Mato Grosso, outra de Portugal. Escrevo para a Sinfônica de Heliópolis tocar na Alemanha. Toco piano solo que também não é brincadeira, tocar sozinho parece fácil, mas não é. Olha, acho que uma coisa alimenta a outra, né? São experiências diferentes, com preocupações diferentes, pontos de tensão diferentes, mas eu sempre fui um músico eclético e os meus ídolos foram músicos ecléticos também. São músicos que botam a mão na massa em diversas situações.

EM – Na música o brasileiro também tem de se virar?
AM –
O brasileiro tem de se virar. Se eu tiver um único trabalho e achar que ele vai me dar tudo é ingenuidade. Na verdade, há a preocupação artística, de não ficar fazendo a mesma coisa trinta vezes por mês que a gente também não agüenta. A versatilidade do brasileiro tem uma natureza de ordem prática também. Temos de estar abertos a novas oportunidades de trabalho. É uma cultura de resistência essa coisa que a gente faz com o jazz, o erudito. De fato, se você for olhar, há uma coisa de guerrilha, porque o suporte que nós temos não chega perto, não faz jus a essa grande tradição de música brasileira, infelizmente.

EM - Gostaria que você falasse sobre a amizade com o Hamilton de Holanda. Quer dizer, é uma amizade que se transformou em parceria musical que rende muitos frutos.
AM –
Os trabalhos com ele têm sido os melhores recebidos. A gente tocou em oito países da Europa, tem conseguido tocar bastante no Brasil. Acabamos de vir de Olinda, foi sucesso o show lá. O Philip Glass estava na platéia, o Gismonti. Esse duo é muito feliz, transcende os instrumentos, piano e bandolim. Na verdade é uma combinação de nossas músicas. E nós temos uma postura que eu definiria como uma humildade no fazer musical. Uma disponibilidade de ouvir o que o outro tem a dizer e complementar, às vezes a gente toca mais com o ouvido do que com os dedos. Em nenhum momento existe uma vontade de um se impor ao outro. Isso a pessoa escuta, né? Por isso a gente é muito bem recebido em qualquer lugar onde a gente toca. Da Finlândia até Olinda.

EM – Um desses frutos que eu falei foi o Gismonti Pascoal, uma bonita homenagem a dois grandes nomes da música brasileira. Como nasceu a idéia de fazer esse trabalho?
AM –
A gente tinha terminado a turnê do primeiro disco, o Contínua Amizade, e começou surgir a idéia de como seria o segundo disco. Já que a gente fez um disco com vários compositores, resolvemos fazer um segundo disco temático, dedicado à obra de um ídolo nosso, um cara que seja importante para a nossa formação. Aí, já que somos um duo, vamos convidar dois caras e Egberto e Hermeto foram os nomes que vieram com muita rapidez. Ao mesmo tempo veio aquele medo de mexer com dois gênios desse tamanho, mas um medo bom, porque a gente sabia que daria conta. Com muito respeito, muito carinho, energia e trabalho, e foi o que a gente fez. Então o resultado está aí. Ta na cara que é um disco com a máxima honestidade musical, com o maior amor por essa música.


EM – Você disse uma vez que não se via como um compositor erudito, mas que isso tem acontecido muito ultimamente?
AM –
Talvez eu seja hoje o compositor brasileiro jovem que receba mais encomendas. É um mercado muito pequeno no Brasil, mas eu recebo encomenda de todas as partes do país. De Manaus até o Paraná. Pra mim é uma alegrai inesperada, nunca fiz planos de virar um compositor clássico, viver e ter uma renda com isso, mas a vida me convidou a isso e eu aceitei de coração aberto. Eu adoro, me vejo muito mais como um compositor que toca do que um tocador que compõe. Escrever para uma OSESP e ouvir aquilo bem tocado é uma emoção muito grande. Muitos meses de trabalho. Agora a Petrobrás Sinfônica gravou uma obra minha de quase meia hora de musica orquestral e está lindo. É muito gostoso ver aquele tanto de gente empenhado em fazer a sua música soar.

EM – Você entrega a obra e supervisiona como ela será interpretada? Esse trabalho de composição envolve isso também?
AM –
Quando é possível, sim. Uma obra nova sempre envolve um trabalho intenso no começo. Você não está tocando uma sinfonia que já foi tocada setenta milhões de vezes. Envolve sim um trabalho, o compositor vai lá e pega no pé um pouco. Acha nota errada na partitura, muda alguma coisa no ensaio que não resultou tão bem. A Petrobrás, por exemplo, me pagou uma passagem pra supervisionar a gravação. Na maioria das vezes consigo trabalhar as composições com as orquestras.  

EM – O erudito, o jazz e a música popular são universos diferentes? Quero dizer, existem peças populares tão lindas quanto as eruditas e orquestras tocando música popular pelo mundo. Gostaria que você falasse sobre isso. Essa distância parece ter diminuído muito nos últimos anos?
AM –
Se você pegar minhas primeiras composições, aos 13 e 14 anos, já tem essa natureza indefinida. Não fico pensando: “Aqui uma pitada de erudito, aqui uma de popular”. Passo muito longe disso. Não é da minha natureza como músico e como pessoa. Uma natureza, digamos, humanista, de ouvir aqui e ali e achar que é bonito e verdade, pra mim está valendo, não quero saber o rótulo. Se é um compositor Tcheco, se é um cara que toca choro no morro.

EM – Existe essa distinção quando você trabalha por encomenda?
AM –
Acho que a pessoa que encomenda já sabe que vem uma coisa inclassificável. Se me pediram é porque querem isso. Se não chamariam um compositor que é assumidamente “o compositor”. Nesse caso, já vem uma visão de música que tem a minha cara. Felizmente eles gostam, a platéia gosta e todo mundo fica feliz. Eu faço música brasileira contemporânea.


EM - Você participou do Festival Música Nova em Ribeirão Preto. O festival foi idealizado e realizado até pouco tempo pelo Maestro Santista Gilberto Mendes. Você teve a oportunidade de conhecê-lo?
AM –
Eu toquei no Festival Música Nova com quinze anos. Minha primeira composição para piano solo. Foi em Ribeirão Preto, antes de vir para São Paulo. Infelizmente não tive contato, mas sou grande admirador do Gilberto Mendes.

EM – Você sabe que ele também é apaixonado por cinema e uma vez ele me disse que se não fosse compositor queria trabalhar com cinema.
AM –
É fantástico, grande senso de humor. Adoro as coisas que ele escreve. Os textos e as obras. Principalmente o lado crítico que está embutido em suas obras.

EM - Gostaria que falasse sobre dois trabalhos que eu gosto muito: Piano e Voz com a Ná Ozetti e Contínua Amizade com o Hamilton de Holanda. Como foi que surgiram as idéias para esses dois trabalhos?
AM –
A parceria com o Hamilton começou em 2004, numa séria chamada Sem Fronteiras, de música que não é nem popular, nem erudita. Com a Ná foi na mesma época. A gente recebeu um convite da (Universidade) Federal do Rio Grande do Sul pra fazer um projeto chamado Piano e Voz. Aí nós começamos ensaiar, você sabe que lá em casa eu tenho um estúdio, onde começamos a gravar os ensaios. Quando chegamos ao final do trabalho de preparação para o show decidimos gravar. Era uma pena a gente fazer tudo isso para um único show. E a chance de gravar na minha casa, com todo o relaxamento, todo o cuidado. Como fiz os dois discos com o Hamilton, o Miramari com o Gabriele, o De Árvore e Valsas. Todos esses discos saíram prontos da minha casa. O show com a Ná foi um grande sucesso e aí nós ganhamos energia para acreditar no trabalho. O disco foi o mais comentado do ano de 2005.    

EM – É impressionante a freqüência que você grava discos. Acaba de gravar o CD Afetuoso pelo selo japonês Celeste e assinou recentemente um contrato com o selo italiano EGEA. Trata-se de um selo que investe no novo mundo do jazz, ou seja, Esperanza Spalding, Roberto Fonseca, Tânia Maria e tantos mais. Você já tem algum projeto pronto para eles? Alguma coisa em vista pra gravar?
AM –
Vai sair uma compilação chamada Veredas, que é dos meus discos brasileiros. Vai sair principalmente nos mercados italiano e japonês. O Miramari já saiu lá e tem o Miramari 2 já gravado. Acabamos de voltar da Itália onde gravamos em trio com o Gabriele Mirabassi e a Mônica Salmaso. Esse disco foi gravado em um oratório maravilhoso do século XVII, tem uma acústica excepcional. Não sei quando vai sair, mas vai ser o meu primeiro grande projeto pela EGEA, depois do Miramari.

EM – Esses discos gravados pelo EGEA serão lançados no Brasil?
AM –
Espero que sim. A conversa é que seja disponibilizado aqui. A gente vai fazer de tudo para que isso aconteça.


Programa:

Beatriz (Edu Lobo e Chico Buarque)
Choro da Contínua Amizade (André Mehmari)
Um Anjo Nasce (André Mehmari)
A Rosa (Pixinguinha)
Odeon (Ernesto Nazareth)
Eu te Amo (A.C. Jobim/Chico Buarque c/ arranjo de André Mehmari)
Lachrimae (André Mehmari)

Intervalo

Ballo ”Suíte para Orquestra de Cordas” a partir de uma dança do Ballo delle Ingrate, de Monteverdi.
Uma Valsa em Forma de Árvore (André Mehmari)
Fantasia Mozartiana para Piano e Orquestra
1 – Cherubino piano concerto
2 – Concerto Chorado – Andrè Mehmari
3 – Non so piú cosa son

2 comentários:

  1. sou fã do Andre Mehmari há tempos e seu disco Lachrimae é um exemplar de cabeceira. sua interpretação em piano solo de clube da esquina também é de arrepiar. o assisti no finado Tim Festival, em trio, a única oportunidade que tive de vê-lo ao vivo. ele devia vir mais ao RJ apesar do pouco espaço para shows

    bela entrevista !
    abs,

    Gustavo Cunha

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  2. Ver e ouvir o André é realmente uma experiência única. Ele atingiu um nível de excelência, sem dúvida.
    Valeu Gustavo e continue com o Mannish BLog

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