segunda-feira, 21 de maio de 2018

Duca Belintani ensina as rotas do blues


Texto: Eugênio Martins Júnior
Foto: J.A. Valim

Assim como o Mauro Hector e Marcos Ottaviano, Duca Belintani passa muitas horas do seu dia trancado em uma sala, conduzindo seus alunos pelas perigosas curvas e encruzilhadas da estrada do blues. 
Instrutor habilidoso, esse paulistano da gema assumiu a missão desde quando decidiu transformar a música em ofício nos anos 80. 
Ainda bem que existem esses caras. Apaixonados pelo blues e... teimosos. Caras que ensinam os truques adquiridos ao longo de décadas de trabalho e estudo, e que gravam discos independentes, merecem o nosso respeito porque colocam a sua arte sempre no primeiro plano. Caso não fosse, não existiriam discos de blues no mercado brasileiro.
Uma de minhas teorias, e eu tenho muitas, é que muitos músicos brasileiros consideram o blues a sua base, mas também  seu laboratório. Duca, Mauro e Ottaviano atestam. Casaram com o blues, mas, infiéis, flertam com o fusion sempre que podem. 
A discografia do Duca tem de tudo: Conduzir, de 2006, que apesar de parecer nome de disco de crente, traz a música homonima em destaque, um climão que se tranforma em batucada, do nada. Os CD Cuíca (2009) e Na Trilha do Blues (2011), aceleram na mesma estrada instumental, mas com muitas  brasilidades. 
Rota 145 (2015) e How Long (2017) consolidam o Duca Belintani como um dos blueseiros mais prolíficos do Brasil. Ambos contam com temas autorais e tradicionais do blues, além de letras cantadas em português e inglês. 
How Long foi gravado parte ém São Paulo e parte na Califórnia, onde Duca vai estagiar de vez em quando. As viagens musicais nascem das viagens verdadeiras, é certo.
E o bom é que tudo isso está disponível lá na Vila Mariana, na sala de aula do Duca. E há quem se habilite a aprender de onde vem o blues e como ele é. Em todas as suas formas.


Eugênio Martins Jr – Como foi o teu início na música?
Duca Belintani – Comecei estudando violão erudito aos doze anos. Aos quinze ouvi Rolling Stones e Jimi Hendrix e quis tocar guitarra. Acabei descobrindo o Eric Clapton e o Blues. Cerca de 1975.

EM – Como foi a transição?
DB – Aos dezoito anos montei a minha primeira banda, mas o  que “virava” no Brasil era banda de rock. O André (Christovam) tocava com a Rita Lee. O Celso (Blues Boy) havia tocado com o Raul, o Sá e Guarabyra. Então a galera que tocava blues tinha que ir para o rock para poder trabalhar. Meu primeiro trabalho lançado foi em uma banda de pop rock em 1983 aqui em São Paulo, o Controle Remoto.

EM – Confesso que não lembro dessa banda.
DB – Gravamos um compacto e um LP. Discograficamente falando, durou uns três anos. Na sequência fui tocar com o Kid Vinil. Já tentava inserir o blues no que eu fazia. Uma das faixas do primeiro compacto do Controle era um blues, chamado Motel Paraíso. 

EM – Muitas blues brasileiros dessa época tinha um motel, né? (risos).
DB – Sim, influência do Tutti Frutti que compunha muito nessa onda. Sempre fui fã do (Luiz) Carlini, um dos brasileiros que me influenciaram. O blues fazia parte do meu jeito de tocar. Com o Kid Vinil foi a mesma coisa. O André (Christovam) Já havia tocado com ele. 

EM – Que ano você começou a trabalhar com o Kid?
DB – Final dos anos 80. Fiquei seis anos e gravei só um disco. Mais voltado ao rock pesado e independente, o XU-PA-KI. Foi na época que o Titãs lançou o Titanomaquia, com Jack Endino, o Nirvana, porrada. Era o que o mercado tinha a oferecer. Tem de tocar de tudo, já tinha tocado sertanejo, forró, samba rock. Tinha que trabalhar, queria viver disso e não podia escolher. Quando parei de tocar com o Kid pensei que naquele momento poderia começar a fazer as minhas coisas. Já estava ouvindo Robert Cray e Robben Ford  e comecei fazer as misturas.


EM – E o blues, apareceu depois do Verminose?
DB – O blues estava sempre junto e eu nunca havia colocado um disco de blues na rua. Sempre estava a serviço de outras coisas. Meu primeiro disco solo é de 1999. Quando lancei o  O MPBlues era uma mistura de MPB com blues. Foi o que me colocou no mercado como artista solo. Aqui em São Paulo tocava o dia inteiro no rádio. 

EM – E o Cuíca?
DB – Foi tudo uma transição. O MPBlues é um disco que eu canto, um disco de MPB com influência de blues. Quando fui fazer o novo disco estava na piração do Robben Ford. Queria tocar guitarra, não queria mais cantar. E no Cuíca também fazia as misturebas. Já estava pensando no mercado da música instrumental. Foi chamado de blues fusion. Em Na Trilha do Blues comecei a pensar fazer mais blues. 

EM – Você começou cantando e depois ficou um tempão fazendo música instrumental.
DB – Não sou cantor, meu barato era tocar guitarra. Mas quando o negócio chegou perto do blues as pessoas começaram a cobrar. O Cuíca e o Conduzir são discos muito loucos, com muita informação. É para quem curtia música instrumental. Daí os shows começaram a ter essa mistura, instrumental e blues, mas hoje é mais blues mesmo. 

EM – Você escreveu livros didáticos para guitarra. Conta essa história.
DB – São quatro livros chamados Na Trilha do Blues. Um projeto antes do meu disco solo, juntando o material didático que dava aos meus alunos. Um roteiro de estudo. No Brasil não existia nenhum método de aprendizado só voltado ao blues. Levei o projeto para uma editora e eles me falaram que trabalhavam com banca de jornais e vendiam muito fascículo. Me pediram para dividir porque queriam colocar nas bancas por dez reais. Pensei, “pô dez reais vai chegar no Brasil inteiro”. A tiragem era dez mil livros de cada exemplar. Cara, chegou na Argentina, Paraguai. Hoje as pessoas me falam que começaram a tocar blues por causa dessa revista. Era a única coisa que tinha. Explodiu.

EM – Que ano foi isso?
DB – Foi em 1998. Em um ano e meio sairam os quatro volumes. Deu muito certo. Foi uma coisa que me projetou no mercado de aula,  de publicação. A HMP, que editava a revista Cover Guitarra, me chamou pra fazer mais coisas sobre violão, guitarra, etc.

EM – Semana passada entrevistei o Marcos Ottaviano lá na sala onde ele dá aula. O Mauro Hector lá de Santos dá aula das dez da manhã às dez da noite. E agora você também está me falando isso. Vocês vivem mais de aula do que de show?
DB – Muito mais. A aula é que segura a onda. Comecei hoje às oito da manhã. De segunda a sábado. Quando tem show eu remanejo os horários.


EM – E isso possibilitou a convivência para depois escrever o livro sobre o Kid Vinil.
DB – Queria fazer uma homenagem a ele. Na verdade, viramos grandes amigos desde que o conheci e pensava por quê a história dele nunca havia sido contada. E ele super na dele, nunca havia pensado nisso. Um dia marquei um café e disse que queria escrever essa história e perguntei se ele autorizava. Ele me perguntou se estava brincando, mas gostou. Chamei um amigo jornalista para organizar tudo, roteiro jornalístico e investigativo e eu ia puxando a história do Kid. Como era uma biografia autorizada algumas coisas ele deixou ir pra frente e outras não. Foi um presente que consegui dar pra ele. 

EM – E você conseguiu lançar o trabalho um pouco antes de ele morrer?
DB – Um ano antes. Mas a intenção era dar um presente pra ele mesmo. Você sabe, a gente não ganha dinheiro com livros no Brasil...

EM – Sei. É uma teimosia nossa.
DB – Foi a vontade de deixar a história, o quanto mais a gente puder fazer será melhor para os que virão. O ganhar dinheiro faz parte porque a gente precisa pagar as contas. A gente grava disco e não ganha dinheiro com isso. Então eu queria que ele curtisse em vida a história dele sendo contada. Ele estava sem trabalhar em rádio, sem aparecer na TV e na época isso voltou a acontecer. Deu uma revigorada na carreira dele e era isso que eu queria.

EM - Você passou uma temporada em Chicago? Como você faz? Já vai agendado ou vai com a guitarra debaixo do braço atrás das gigs?
DB – Eu vou uma vez por ano, há uns seis anos e já fiz de tudo. Na primeira vez fui para conhecer quem é quem, o circuito de blues. Não só Chicago, Indianápolis também. Na segunda vez já fui com a guitarra, chegava lá e fica esperando e às três da manhã eles começavam a chamar todo mundo pra tocar. E você começa se enturmar com os músicos.

EM – Tem muito brasileiro?
DB – Tem brasileiro, mas gosto de ir aos lugares onde não tem brasileiro. Principalmente em Los Angeles. Em Chicago tem uma história engraçada. Eu armei a gig antes de sair daqui e quando cheguei fui muito bem recebido pela casa, pela banda. E eles disseram que eu ia tocar na segunda entrada. Tocaram a primeira e o responsável pela banda me chamou pra subir ao palco. O pessoal das mesas continuou comendo e bebendo sem dar a menor importância. Daí ele disse que ia chamar um guitarrista do Brasil. Nesse momento um silêncio tomou conta da casa, todo mundo parou de comer e beber e olhou pro palco. Eu pensei: “Fudeu!”. Fiquei procurando um segundo amplificador e o guitarrista disse que só tinha um mesmo e saiu do palco, tipo, “se vira aí”. A músicia começou a rolar e no final eu já ia desplugando a guitarra, mas o baixista disse pra eu ficar. Na segunda música percebi que o bar voltou ao normal. Bom, não incomodei os caras. Nessa eu percebi que eles ficam surpresos quando aparece alguém de outro lugar, mas aí: “ahh, mandou? Ok, mandou. Então deixa tocar” (risos). Ou seja, você tem de ir na onda dos caras. Não pode chegar lá e querer encangalhar. Não adianta querer inventar a roda deles. 

EM – Agora você já tem esquema armado chegando lá?
DB – Não, nem sempre. Depende de data, de um monte de coisas. Mas já conheço um pessoal. Uma das faixas do meu disco gravei lá. Me falaram que havia um estúdio legal onde costumavam gravar. Não é uma intenção ter carreira internacional, mas é legal conhecer como eles trabalham.

EM – Qual o cuidado que tem quando faz tua leitura de um clássico, como fez em How Long, por exemplo?
DB – Não é nem um cuidado. É um respeito pela música do cara. E entender que o que ele faz é te oferecer uma informação. Na minha visão esses caras das antigas te oferecem o blues. Pega Sweet Home Chicago e perceba quantos mudaram a letra. Cada um coloca a sua história dentro daquela música. O cara deu o gancho. Ele contou pra você e agora você conta a sua. Gosto de fazer isso sem deixar de lado a história que ele me deu. Isso eu faço com os meus alunos. Não tem essa de esconder o jogo, porque aquilo veio  pra mim de alguma maneira e tenho que devolver. Poxa, o John Lee Hooker fazia uma parte da letra a cada noite que tocava. Ele fazia uma parte, aí brigava com a mulher e no outro dia fazia outra parte. Aquilo não tem fim. Penso o blues como uma roda girando o tempo todo. 


EM – Ontem a Anitta lançou o vídeoclipe da música nova Vai Malandra que está gerando muita polêmica. Pra mim esse clipe é a cara do Brasil atual, tem favela, tem bunda, mas tem ritmo. Não acho ofensivo, nada que a Gretchen, Rita Cadillac e Carla Perez já não tenham mostrado. Na época que o blues nasceu, no começo do século passado, isso não se chamava mimimi, se chamava segregação. Gostaria você falasse sobre isso. Você deu azar porque o lançamento do clipe foi ontem (risos).
DB – Não vi o clipe. Vi o Lulu Santos dizendo alguma coisa. Depois desdisse. Também não me incomodo com nada disso. Acho que tem público pra tudo. Se você não gosta de uma camisa, não compre. Se não gosta da Rede Globo, não assista. Se não gosta da Anitta, não compre o disco dela. Hoje você abre o computador e o mundo inteiro está lá. Fico triste pro não ter mais diversidade. Por exemplo, se eu quiser assistir hoje um show de bossa nova não vou conseguir. Num país como o Brasil?! Eu não poder ver um show de bossa nova na minha terra! Já aconteceu de um amigo que veio de fora querer ir a  um show de bossa nova e eu não poder levá-lo por não ter na cidade. Na Argentina tem show de tango todos os dias. O funk é uma coisa que o carioca gosta, bunda a praia está cheia. Não deveria ser agressivo. Há movimentos que defendem o uso do shortinho sem que a mulher tenha que passar por qualquer constrangimento. O que elas querem dizer é que têm esse direito. Usam o que quiser e pronto. O preconceito é que é ruim. 

EM – Mudando um pouco a rota da coversa, me explica o que é essa Rota 145.
DB – É uma brincadeira e uma coincidência. Eu tinha uma música instrumental que precisava dar o nome. Conversando com o Tim, que faz as artes dos CDs, cheguei a conclusão que seria legal falar sobre o formato musical do blues, os 1º, 4º, e 5º graus. Só que estava indo para Los Angeles e pensei em procurar essa rota pra ver se existia mesmo. E tem, mas são rotas regionais, todas pequenas e em todos os estados tem. E na Califórnia é cercada de plantações de algodão.

EM – Alguns dos artistas contemporâneos de New Orleans gravaram e gravam discos muito influenciados pelos acontecimentos da cidade. Por exemplo, Trombone Shorty gravou uma música chamada Hurricane Season, Leroy Jones gravou Sweeter Than a Summer Breeze, ambas sobre o furacão Katrina que devastou a cidade. Como São Paulo influencia a tua música?
DB – Gravo muito com guitarra elétrica. Se morasse no interior talvez tivesse mais coisas com violão, que aprendi a tocar e gosto muito. Mas não sinto que isso esteja no meu DNA pra fazer blues. O Little Will faz coisas muito bacanas com violão e gaita. Pra ele tem todo sentido. O que a cidade me dá, essa paranóia, a correria do dia a dia. Meu blues reflete isso. Ainda não me influenciou nas letras, mas no jeito de tocar, o amplificador com drive. Acho que isso vem da cidade.




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