terça-feira, 2 de maio de 2017

As duas grandes escolas musicais brasileiras, percussão e cordas, presentes na música de Alexandre Birkett


Texto: Eugênio Martins Júnior
Fotos: José Luiz Borges

Alexandre Birkett é professor de música e custeia seus discos com suas aulas. Além de estudioso, é um curioso das cordas, o que faz toda a diferença quando se deixa de lado a rigidez dos estudos para abrir passagem ao lúdico.
Birkett se enquadra na categoria de músicos como Guinga, Marco Pereira, Ulisses Rocha e Paulo Bellinati e, além de linguagem própria, onde as cenas brasileiras se fazem presente sempre, cultiva parcerias duradoras. 
Uma com o baixista Washington Soares, do CD Feira Livre. Outra, prolífica,  com o baterista e percussionista Robertinho Silva que rendeu dois álbuns conceituais de destaque na discografia instrumental brasileira: Mixtura Brasileira e Cordas e Tambores. Verdadeiras viagens pelas montanhas de Minas e o sertão do Nordeste.
Temporal é uma obra prima. Essencialmente de cordas e percussão, as duas grandes escolas brasileiras, o CD nos pega pelos ouvidos e pelo coração.
Além da relação com o tempo, a palavra Temporal também representa a descarga de energia provocada pela natureza. É sem dúvida o CD mais experimental da carreira de Birkett que introduziu timbres de cordas variados, colocando cavaquinho, violão tenor, banjo, craviola, violão de seresta e guitarra portuguesa na frente da vitrine.
Também reuniu um time de bambas. Além de Washington, o musicista Jorge Lampa  e o guitarrista John Stowell que sola durante nove minutos em Fragmentos de Alice e abrilhanta El Guardian. Nesse trabalho as percussões ficam por conta de Plínio Romero e os irmãos Binho e Vanderson Franco, filhos do Mestre Paulinho, da escola de samba Brasil de Santos.
Não existe desculpa. A entrevista realizada há dois anos só está sendo publicada agora pela minha total falta de organização. 
Gravei em fitas – ainda no primeiro gravador analógico que comprei ao entrar na faculdade de jornalismo – que frequentemente desaparecem no triângulo das bermudas das minifitas cassetes que existe aqui no meu apartamento. 
Um dia elas aparecem. E entre uma cerveja artesanal e a lida do dia a dia eu trancrevo e publico as conversas nesse Mannish Blog.


Eugênio Martins Júnior – Quando começou tocar violão e guitarra?
Alexandre Birkett – Comecei os dois ao mesmo tempo, a partir dos 16 anos, Led Zeppelin e Beatles. Tocando com os amigos na rua, na primeira metade dos anos 80, um pouco tarde. Todos eles foram para outros caminhos. 

EM – Naquela época a cena roqueira de Santos era bem forte. Você passou por alguma banda?
AB – A banda mais próxima era o Alta Tensão, do Washington, Dentinho, Mauro e Marcelo Elias. Naquela época também havia bandas de jazz rock, tinha o Tempo e Espaço onde toquei. Música instrumental tocava na rádio. Comecei no rock, mas logo me interessei por Santana e John McLaughlin. Fui por esse caminho. Estudando sozinho e tirando as coisas dos discos. Essa época não tinha internet. Se um cara no Canal 1¹ tirava uma música do Yes a gente ia lá perguntar como ele fazia. A coisa era mais ou menos assim. O guitarrista do Alta Tensão tocava aquele solo da música Eruption, do Van Halen e quando eles fizeram um show na danceteria Heavy Metal a molecada foi ver como ele tocava, mas na hora do solo eles cobriram com uma toalha e não deixavam ninguém ver. Que absurdo (risos). 
O negócio foi indo. O passo importante foi a chegada do CLAM, aquela escola do Zimbo Trio. Em 87 decidi me profissionalizar. Estudei com o José Roberto Araujo, com o João Souto e tinha amizade com o Kiko Moura, um cara que tinha muita informação. A gente tinha de estudar em livros, aprender inglês na marra. Só na segunda metade dos anos 80 foi que o Almyr Chediak começou a organizar uns livros de teoria e harmonia, o Dicionário de Acordes Cifrados, Harmonia e Improvisação. Um marco para o aprendizado de música no Brasil. Ainda fiquei cinco anos no CLAM. 

EM - Passou a levar a música a sério?
AB – Pra mim foi aquele lance de a fome faz a arte. Havia acabado de sair do colegial e decidi me embrenhar na música. Meu pai havia acabado de falecer. Uma coisa que me fez estudar e evoluir foi que aquilo passou a ser meu ganha pão também. É meio clichê falar isso, mas às vezes não é você que leva a vida, é a vida que te leva. 

EM – Nessa época você foi pra São Paulo tocar?
AB – Sim, fui pra mudar de ares. Tocava em Santos no Tempo e Espaço com o Maurício Fernandes, o Paulo Farias, o Marquito na percussão e o Paulinho Batera que hoje está no Japão. Aí fui tocar no Torto, na banda Jornal do Brasil. Toquei um tempão com o Julinho e então larguei pra morar e tocar em São Paulo com outros amigos. Um deles era o Alexandre Faccas, o Monga, o outro era o Rivaldo, um guitarrista muito bom que tocava Jeff Beck, Stevie Ray Vaughn, tinha um Gibson 335. Era a decadência do bairro Bixiga, mas ainda tinha muitas oportunidades para a gente tocar. Conheci a cantora Tutti Baê e toquei um tempão na banda dela. Depois toquei com a Bi Scott em festivais de blues em Ribeirão Preto e no circuito de blues de São Paulo. Todos aqueles bares. 

EM – Passou a viver de música?
AB – Sim, mas tocava de tudo. Até em banda de baile. Música portuguesa, judaica, italiana. O bom é que todas essas músicas eram escritas e o fato de estudar música me dava vantagem para ser contratado. Não que o músico que lê seja melhor, não existe isso. Só tinha essa vantagem. Mas mesmo assim os outros músicos zoavam muito os guitarristas e viviam fazendo as tradicionais piadas sobre as mentiras dos guitarristas. Sabe quais são?

EM – Não.
AB – A primeira é: “Pô, não estou me ouvindo?” A segunda: “Eu não quero solar nessa música”. A outra é: Sabe qual é a melhor maneira de deixar um guitarrista quieto? É colocar uma partitura na frente dele. E a piada do maestro que fala para o pianista: “Olha, o acorde é Dó com sétima maior, nona e décima primeira aumentada. O pianista vira para o guitarrista e fala Dó com sétima maior. Aí ele fala para o baixista Dó. Aí o baixista fala para o baterista, “Bolero”. E o baterista fala para o percussionista, “faz qualquer coisa aí”. Mas são piadas que a gente tem de aguentar. 


EM – Como teve a ideia de gravar o teu primeiro disco?
AB – Meu primeiro disco foi gravado em 1999. Na segunda metade dos anos 90, em contato com o Washington Soares, passei a pensar em música autoral. Pensávamos tocar um som brasileiro, sem influências de fora. O que vejo hoje como uma bobagem porque música é universal. Então comecei a pesquisar os ritmos brasileiros, as religiões afro brasileiras, as músicas dos recônditos do Brasil. O primeiro cara que me deu esse toque da composição foi o Wagner Parra². Incentivou a fazer um disco com as minhas músicas. Então gravamos o Trem Pra Ribeirão, em 1999. Metade das músicas desse disco são minhas e a outra metade são do Washington. Tentando encontrar esse caminho da composição. 

EM – Atualmente o músico está muito aberto para o mundo, é difícil encontrar a sua voz?
AB – Hoje em dia tem grandes artistas fazendo isso. Dando uma volta... e voltando ao ponto de origem.
A pré produção do Trem Pra Ribeirão foi feita aqui, mas foi gravado em São Paulo. Começamos ensaiando em 1997 sem saber se teríamos recurso pra gravar. 

EM – O segundo álbum, o Feira Livre, é bem diferente. Com mais percussão, a tua primeira parceria com o Robertinho Silva. Quando você começou a dar pistas dessa tua influência percussiva.
AB – Comecei a me ligar mais nisso. As pessoas começaram a perguntar porque eu dava tanto espaço para percussão. Eu adoro percussão. Aquele é um disco de arranjador e não de instrumentista. Foi pensado para dar espaço para todos. Foi um disco com as músicas um pouco mais curtas do que o anterior. Inserimos mais instrumentos de sopro também. O Robertinho estava em Santos e o Zé Cintra que toca no disco e é sobrinho dele o convidou para ir ao estúdio e ele gostou do que ouviu. Na época ele estava gravando com o Randy Brecker. Robertinho é um cara que gravou mais de 200 discos na carreira, imagina? 

EM – Eu ouço as tuas músicas instrumentais e imagino cenas brasileiras, principalmente por causa dos títulos: Feira Livre, Fogo Na Chaleira, Bicho Preguiça, Aboio do Encantado, Velha Ermida. Você é influenciado por essas imagens ou é uma viagem minha? 
AB – Procede. Isso que você fala é interessante. O título da música instrumental é o único viés que ela dá pra alguma viagem. Tem o lance imagético. O título te dá uma dica do que pode acontecer. A Feira Livre é a feira em frente à casa do Washington. Ele vive aquilo toda semana e a feira é a mistura de tudo, né? A barraca do cara que é árabe, do português, do pernambucano, do baiano. Tem sotaques e você pode traduzir isso em música. E também com relação as cenas santistas, Chuva no Mar, São Jorge dos Erasmos, Mogiana. Eu ia de trem para casa dos meus avós em Ribeirão Pires. Meu outro avô era maquinista. São referências que acesso nesse banco afetivo. Ouvia os sinos do Valongo na hora de ir embora e compus uma música que está no disco Cordas e Tambores. Minha mãe era professora e eu e Washington estudamos juntos nos lugares onde ela dava aula. Depois ela foi diretora e eu fui atrás, na Areia Branca³. Na escola que era em frente ao cemitério. A molecada jogava bola dentro do cemitério. E nós fazíamos educação física nas ruínas do Engenho dos Erasmos. Íamos correndo até o campo do Jabaquara. Ali foi um dos primeiros engenhos do Brasil. 


EM – Outra coisa que a gente percebe na tua música é o lance da pesquisa de ritmos brasileiros e africanos. Os tambores e as cordas.
AB – Não adiante você falar de ritmos sem conhecer. Todas as minhas viagens para Minas Gerais, Bahia, fronteira do Brasil, no Paraguai com a cantora Perla, em 2003. Ela faz muito sucesso lá. Tocamos em um lugar para mais de três mil pessoas. Então nos deparamos com algumas pessoas o tempo todo falando guarani, tocando uma música chamada chamamé, que uns também chamam de polca paraguaia. Isso acontece em todos os estados do Brasil. Principalmente no interior. É tudo muito misturado. Caldiado, como falava o Darcy Ribeiro. Tem a lenda do pacto com o diabo no Mississippi, mas aqui os violeiros fazem a mesma coisa, eles deixam a cobra enrolar na mão, essas coisas. Então você não precisa se envolver, mas tem de botar o pé no terreiro para poder entender esse processo cultural. A rítmica, os instrumentos que eles tocam nesses rituais. Acabei sendo influenciado por isso. 

EM – Não adianta ficar aqui na cidade, tem de meter o pé na estrada porque aqui chega tudo diluído. 
AB – Quando fui ver o Albert King em São Paulo em 1991 pensava que ele ia tocar com o Robben Ford, mas ele não quis. Talvez, na cabeça dele a música do Robben Ford já fosse uma diluição. Não sei. Mas será que o Blues quando foi pra Chicago também já não foi diluido? 

EM – O Mixtura Brasileira foi um álbum inteiro em parceria com o Robertinho Silva. Fale um pouco sobre esse disco.
AB – Ele sempre foi meu ídolo. O cara que pavimentou o caminho de muitos bateristas e percussionistas. Ficou 28 anos com o Milton Nascimento, gravou com Wayne Shorter, Ron Carter, Toninho Horta, Chico Buarque, um cara respeitadíssimo. Aquilo era um sonho. Achei que ele estava brincando. Fizemos por um selo pequeno do Guarujá que não existe mais, o Marine Music. Usei vários instrumentos, viola caipira, bandolim, violão tenor. Tinha tempo, o disco foi gravado durante um ano, entre 2002 e 2003. Com bastante calma. Hoje vejo um pouco de perigo nisso. Como foi feito por um selo e não precisavámos pagar horas de estúdio, fiquei  com muito preciosismo. O CD vendeu bastante, mas não fizemos nenhuma turnê por causa da agenda dele. Ainda rende bons frutos, tem no iTunes, fácil de achar. Ele gosta muito do disco. Semana passada me ligou falando que ia fazer outro Mixtura Brasileira. Pô, um cara com 73 anos está com pique de garoto. 

EM – Mas chega uma hora que tem de acabar.
AB – Sim, mas como o produtor não nos dava o deadline eu ficava lá tocando, criando, como era feito há trinta anos. 

EM – As composições são de ambos? Especificamente para esse trabalho?
AB – São minhas e uma dele, Duna. Algumas foram criadas para o Mixtura e outras eu já tinha. 

EM – E depois você gravou o Cordas e Tambores.
AB – Não foi o Temporal.


EM – Calma já vou falar dele também.
AB – (risos). No Cordas e Tambores foi o mesmo processo. Em 2010 estávamos pensando em fazer um disco novo e inicialmente seria com um trio, dessa vez com o Luiz Alves no baixo no Rio de Janeiro. Mas ele teve um problema e resolvemos gravar em São Paulo porque era mais barato. Banquei esse disco do meu bolso e gravava quando o Robertinho estava em São Paulo. Gravamos a parte dele em um final de semana. O Vinicius Dorim participou nas flautas e o Alberto Lucas fez os baixos. Tem também a participação do Rogério Botter Maio no contrabaixo e o Everaldo Casimiro no trombone. 

EM – Já falamos sobre a pesquisa dos ritmos e do folclore. Gostaria que você falasse agora sobre a pesquisa de instrumentos de cordas que você faz. O Temporal é uma vitrine desse trabalho. É um disco excepcional nesse sentido.
AB – É um negócio meio maluco. A guitarra compartilha a mesma afinação do violão, mas existem tantas afinações alternativas. O bandolim tem a afinação do violino. O violão tenor é parecido com a viola de orquestra. A guitarra portuguesa é totalmente modal. A de Lisboa é uma e a de Coimbra é outra. Faço uma analogia com o blues, aquelas coisas do Delta que traz a afinação aberta, como a viola capira também tem. Se eu pensar os instrumentos de uma forma cartesiana ficaria louco. Então para esses instrumentos, deixo meu lado mais lúdico e intuitivo tomar conta. A guitarra portuguesa é totalmente intuitiva. É uma diversão com respeito ao instrumento, por isso não digo que “toco” efetivamente. Uso para dar um timbre diferente. Isso virou referência. Outro dia um amigo trouxe um Oud da Jordânia e disse que pensou em mim. Imagina pegar a afinação desse instrumento? Ele não tem traste. São cores diferentes. 

EM – Como foi a participação do John Stowell no Temporal?
AB – É um cara muito generoso e um músico excelente. Nos anos 90 estava em busca de novas ideias e mandei uma carta pra ele sobre dúvidas que tinha. Ele me respondeu com uma carta com um monte de xerox, como se fosse uma aula, de graça. 

EM – Os músicos americanos são muito profissionais. Qualquer coisa que você solicita eles respondem.
AB – Sim, continuamos em contato. Sempre nos correspondendo. Um dia falei pra ele gravar e ele topou, então mandei as músicas e ele gravou nos Estados Unidos. E ele quer muito tocar no Brasil. Ele consegue tocar no Chile, Argentina, mas não no Brasil. Pô, o cara gravou com o Dave Liebman, tem quinze discos gravados. É muito difícil. 

EM – Você nunca gravou um disco no formato quarteto de jazz. Por quê? 
AB – Tenho um projeto para fazer isso. Tenho um disco pronto na minha cabeça, trio ou quarteto com músicas autorais. Também gostaria de gravar um disco com músicas do Tom Jobim, Beatles, e caras que admiro do jazz, mas esbarra na burocracia dos direitos autorais, além de ser uma grana danada. Há muito tempo que não gravo guitarra. Faz tempo que também não gravo bateria porque os estúdios não me convenciam sobre os timbres. E piano não gravava porque queria um piano de verdade e não teclado. Deixei os violões um pouco de canto e voltei a me apaixonar pela minha guitarra. 

EM – Muita gente não acredita na música instrumental autoral no Brasil. O que você acha disso?
AB – É um processo. Não tem nada a ver gravar os clássicos de jazz se eles já foram bem feitos desde os anos 50, os clássicos do Miles com o John Coltrane, Philly Joe Jones, Paul Chambers. Você vai fazer o quê? Os standards são um grande aprendizado, mas não podemos tocar da mesma maneira. Às vezes o produtor de contrata pra tocar daquela maneira. O certo é o músico acreditar no seu trabalho. Ninguém é igual a ninguém. Uma vez fui tocar em Florianópolis e o repertório era metade meu e metade de standards. Chegando lá a produtora não quis. Disse que o público estava acostumado a ouvir música autoral e disse pra tocar as minhas músicas. Era uma semana que estava um monte de gente boa tocando, o Bebê Kramer, Tatiana Cobbet e Marcoliva e outros. Isso pra mim foi uma grande aula: “Acredita no teu som”. 

1 - Para quem não conhece, Santos é cortada por canais que viraram referência de localização.
2 - DJ santista falecido em 2015, poucos meses após essa entrevista.
3 - Bairro periférico de Santos.




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